História da circuncisão

cirurgia outros

Você já sabe o que é a circuncisão. Conheça agora suas origens e trajetória ao longo da história, e entenda por que ela é tão "famosa".

ritual no egito antigo
Reprodução de relevo egípcio datado de aproximadamente 2300 A.C.

A circuncisão ritual é muito antiga, havendo indícios concretos de sua prática há milhares de anos na África, Oriente Médio e Oceania (na América, é sabido que os Maias praticavam rituais de sangria genital, mas há controvérsias quanto a se os mesmos envolviam ou não a amputação do prepúcio).

Alguns desses indícios remetem a períodos anteriores ao relato da circuncisão de Abraão presente no Velho Testamento, evento fundador da religião judaica.

Na África, por exemplo, a semelhança entre os ritos de tribos africanas distantes milhares de quilômetros entre si sugere que a circuncisão seja uma prática antiquíssima em tal continente.

Circuncisao ritual de jovem em tribo africana
Circuncisão como rito de passagem à idade adulta ainda é executada nos dias de hoje em diversas tribos africanas

Por que se praticava a circuncisão ritual?

Existem algumas hipóteses para o seu surgimento: punições e proibições a desvios de conduta sexual, ritos de passagem da infância à idade adulta, sacrifícios expiatórios de religiões arcaicas.

A circuncisão dificultaria e inibiria a masturbação e reduziria o prazer sexual, e ainda resultaria numa diminuição da ocorrência de estupros no interior de agrupamentos primitivos.

O estudo científico "The intromission function of the foreskin" constatou que a penetração orificial da glande descoberta e desprovida de lubrificação demanda muito mais força (até 10 vezes mais nas condições de teste) do que aquela necessária para a penetração da glande inicialmente coberta por um prepucio retrátil (o qual pode utilizar a entrada do orifício como ponto de apoio durante a penetração, permitindo que a glande - naturalmente lubrificada - seja projetada para a frente com pouquíssima resistência devida ao atrito).


bebê sendo circuncidado por rabinos
Na religião judaica, a amputação é realizada em recém-nascidos


menino sendo submetido a circuncisao por religioso muçulmano
Na islâmica, o ato geralmente ocorre ao longo da infância


A partir dos primeiros séculos da Era Cristã, entretanto, a difusão da amputação ritual do prepúcio passou a encontrar uma certa resistência ao longo da história, pois o Cristianismo não perpetuou o caráter "religioso" dessa prática.

Novas justificativas

Nos últimos séculos, em sociedades cujo sistema religioso não exigia ou nem mesmo sustentava a prática da circuncisão ritual, foram racionalizadas outras justificativas para a sua perpetuação como procedimento de rotina.

Durante a era vitoriana (segunda metade do século XIX, no Reino Unido), passou-se a defender que a amputação do prepúcio poderia prevenir doenças como a poliomelite e a tuberulose, e ainda evitar uma temida síndrome então conhecida como insanidade masturbatória.

O ponto crucial para forçar a aceitação da circuncisão como medida "preventiva" era demonizar o prepúcio e culpá-lo pelas doenças mais temidas da época.

Nos Estados Unidos, esse movimento iniciado no Reino Unido ganhou força no final do século XIX, e em pouco tempo a circuncisão já estava sendo propagandizada naquele país como um remédio para o alcoolismo, epilepsia, asma, gota, reumatismo, curvatura da coluna vertebral, dor de cabeça, histeria e outros distúrbios do sistema nervoso, paralisia, desnutrição, "terrores noturnos", pé-torto, eczema, convulsões, retardo mental, promiscuidade, sífilis e câncer. Os médicos também aconselhavam a circuncisão para o tratamento da neurastenia, uma condição psiquiátrica generalizada cujos sintomas se assemelhavam aos do que é hoje conhecido como síndrome do pânico e depressão.

Um pouco mais de história

Enquanto a Inglaterra acabou abandonando a circuncisão de rotina por volta da metade do século XX, nos Estados Unidos essa prática não só continuou como se massificou ainda mais a partir da década de 50.

Uma possível explicação para esse fenômeno é o fato de que, após a segunda guerra mundial, os EUA passaram a sofrer profunda influência cultural judaica, exercida tanto politicamente quanto através do controle de seus meios de comunicação (agências de notícias, canais de televisão, indústria cinematográfica).

imagem

Não por acaso, Israel e Estados Unidos são os únicos países onde a circuncisão neonatal ainda é amplamente difundida.

Outro fenômeno curioso foi o caso da Coreia do Sul, que, como consequência da "americanização" de sua cultura após a guerra da Coreia, teve o número de interventos aumentado drasticamente nas últimas décadas do século XX. Naquele país, entretanto, a circuncisão de rotina tem sido predominantemente executada em adolescentes, e não em recém-nascidos como no caso dos EUA e de Israel.

Atualidade

Em pleno século XXI, a prática não-terapêutica da amputação do prepúcio continua firme e forte no mundo islâmico, nas comunidades judaicas e em boa parte da África.

imagem


Nos Estados Unidos, apesar de ainda muito difundida, a circuncisão rotineira de recém-nascidos vem perdendo força recentemente, graças ao trabalho de conscientização desenvolvido por uma série de grupos ativistas em prol da integridade genital infantil.

Manifestação contra a circuncisão de rotina em frente à Casa Branca
Manifestantes em frente à Casa Branca

Mas mesmo nos países (como o Brasil) em que a circuncisão ritual ou de rotina é praticada somente por minorias, ainda existe uma certa propensão a praticar a remoção do prepúcio por qualquer pseudo-motivação médica ao longo da infância e da adolescência, como inflamações via de regra facilmente tratáveis. Em outras palavras, é como se a postectomia fosse "uma solução à procura de um problema".

Essa propensão inconsciente a circuncidar proveniente de tempos remotos, associada à desinformação da população (e até mesmo de parte da comunidade médica) e a interesses financeiros escusos faz com que a frequência de execução desse intervento seja muito maior do que o clinicamente necessário.

Referências

- Remondino P (1891). History of circumcision. Philadelphia: F A Davis.
- Etienne B (1864). Relation des choses de Yucatan de Diego de Landa. Paris: Durand, 162.
- Marck J (1997). Aspects of male circumcision in sub-equatorial African culture history. Health Transition Review (7), 337–359.
- Girard R, Oughourlian J, Lefort G (1987). Things hidden since the foundation of the world. Stanford: Stanford University Press.
- Taves D (2002). The intromission function of the foreskin. Med Hypotheses, 59(2), 180.
- Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 3.
- ​Miller G (2002). Circumcision: Cultural-Legal Analysis. 9 Va. J. Social Policy & the Law, 497.
- Darby R (2003). The masturbation taboo and the rise of routine male circumcision: a review of the historiography. J Soc Hist, 36:737-57.
- Rickets B (1888). Circumcision from a Dermatological Standpoint. Cincinnati Lancet-Clinic, 40-42.
- Hutchinson J (1890). A Plea for Circumcision. British Medical J, 769.
- Beard G (1882). Circumcision as a Cure for Nervous Symptoms. Philadelphia Med. Bull., 248-49.
- ​Weber M (2015). A straight look at the jewish lobby. Institute for Historical Review.
- Pang M, Kim D (2002). Extraordinarily high rates of male circumcision in South Korea: History and underlying causes. British J of Urology International, 89(1), 48-54.
- Park S (2009). The Present and Future of Americanization in South Korea. Journal of Futures Studies, 14(1), 51-66.
- http://intactnews.org/node/85/1309998189/list-organizations-against-genital-mutilation
- Shahid SK (2012). Phimosis in Children. ISRN Urology, 2012:707329.
- Wallerstein E (1980). Circumcision: An American Health Fallacy. Springer Publishing.